sexta-feira, 20 de abril de 2012

Em andos, eu

Em vão, cansei trabalhando
Em demasia, frustrei-me falando
Em desespero, ousei amando
Em angústia, aprendi perdoando
Em dores, sufoquei-me calando
Em preces, julguei-me curando
Em diálogo, construi-me relacionando
Em tréguas, escondi-me sonhando
Em afagos, treinei-me apanhando
Em celinhos, fingi-me gostando
Em absconditus,
Me conheci!




Interpretação


Quero iniciar comentando sobre o título: "Em andos, eu". A preposição em indica lugar ou situação. Podemos pensar nos diferentes ambientes de cada relação dada e também nas combinações verbais que esses ambientes promovem. A primeira parte de cada situação é formada com substantivos que denotam cinco situações: (a) de incredulidade: vão e demasia (b) de aflição: desespero, angústia e dores; (c) de conversação: preces e dialógos; (d) de relação afetiva: tréguas, afagos e celinhos; e (e) de relação religiosa: absconditus.
Essas diferentes situações remetem o leitor à jornada cotidiana. São experiências do andar, caminhar, com a vida. É a junção da erfahrung (experiência) e da erlebniz (vivência). Na experiência, somos ser (ente) quando identificamos nosso momento histórico de devir acontecer, ficamos conscientes do poder revolucionário da transformação, apalpamos os ideários de libertação, emancipação e redenção. Entendemos a essência divina em nós: corpo, alma e espírito se comunicando com todos os demais entes da criação. Daí, então, vem a vivência, fonte permanente de atitudes proativas na construção do eu. Viver é a defesa de si na luta contra os projetos de aniquilação. É encontrar-se em todas as instâncias e medidas temporais autoconhecendo-se. É assumir responsabilidades sem culpa e culpabilizações. É redimir-se da autocomiseração e de condenar o diabo como manipulador das situações. Celebrar as vitórias é reinaugurar novas vivências, estilo próprio de quem sabe gozar a vida.
A segunda parte de cada linha do poema é construída no tempo passado. Memória, reminiscências, lembranças, mementos, e outros tantos sinônimos projetam o leitor a entrar no resgate da história. Viver sem passado é assumir-se fracassado, é rejeitar os fundamentos da jornada já iniciada por outros. Assumir o passado significa saber interpretar a si mesmo e os símbolos formadores da vivência, sejam eles bons ou ruins. É ter maturidade de saber carregá-los. É por isso que a construção verbal pretérito perfeito+gerúndio (locução verbal) dá um sentido de ação constante, ainda que realizada no passado. Gosto da definição grega de que todo gerúndio é um adjetivo verbal, isto é, dá-se uma qualidade à ação, estado ou fenômeno. É bom entender aqui que a terminação ando dinamiza as atitudes, colocando o indivíduo em movimento. O eu sempre irá acompanhar o ando para movimentar-se. Então, conhecer-se é uma atividade dinâmica de caminhada. Dar uma volta, passear e badalar deveriam exemplificar as diferentes situações de autoconhecimento. 
Não é à toa que os verbos opõem-se às situações. A semiótica aqui nos ajuda melhor entender a transição dos enunciados

Em vão, cansei trabalhando =  improdutividade, insatisfação
Em demasia, frustrei-me falando = a comunicação é monóloga, unilateral
Em desespero, ousei amando = privado do valor afetivo, sente-se só
Em angústia, aprendi perdoando = não aceita certos comportamentos alheios, mas submete-se
Em dores, sufoquei-me calando = reprimindo-se, anulando-se
Em preces, julguei-me curando = a fé estabiliza a pessoa (resiliência)
Em diálogo, construi-me relacionando = recupera-se a auto-estima
Em tréguas, escondi-me sonhando = busca-se outras leituras/oportunidades de mundo (vivência)
Em afagos, treinei-me apanhando = a disciplina é prazerosa para os que sabem amar
Em celinhos, fingi-me gostando = sexualidade em formação
Em absconditus, Me conheci!
= o encontro ensimesmado

Então, pode-se dizer que a relação de valores (paixões) revelada no poema são o autoconhecimento como caminhada para a liberdade humana. Conhecer-se é como caminhar por um bosque, onde não há rumos, exceto aqueles criados pela própria beleza da natureza: pradarias, cavernas, clareiras, rios, árvores, flores, animais, etc. É entender as passadas que dão ritmo à vida, compreender os passos cujas cadências preparam-nos para ultrapassar os acidentes geográficos. 
No nível máximo das abstrações, a formulação do quadrado semiótico fica assim:

É bom ressaltar que:
a) Andar é a ação necessária para entender a vivência como modelo de autoconhecimento. É o momento eufórico da pessoa. Caminhar autoconhecendo-se gera a liberdade humana. O trabalho dinamiza as forças produtivas individuais e promove a interação com o próximo. Cria-se interação dialógica, eliminando a solidão. O ser humaniza-se.
b) Não-andar é ação contraproducente à experiência sentida. É anular-se, impossibilitando as ações geradores de vida e liberdade. É o estágio disfórico do indivíduo. Não querer conhecer-se é aprisionar-se, é o isolamento de si.

Uma excelente proposta ministerial cristã para o autoconhecimento seria os momentos de aconselhamento, no qual a pessoa relata seu caminhar no autoconhecimento. O aconselhamento tornar-se-ia terapêutico. Entretanto, qualquer condução diretiva nesse processo é contribuir para a frustração do indivíduo. Pode parecer estranho, mas sou contra o método diretivo de aconselhamento adotado por muitos pastores e líderes cristãos. 
Outra atividade ministerial seria o culto, no qual celebra-se a vida, a caminhada do povo com Deus. Entretanto, os cultos hoje têm sido intimistas, instigando testemunhos fora da caminhada com o autoconhecimento. Os relatos são vistos totalmente distantes da experiência humana. Cristo sempre é interpretado com aquele que visitou, que falou, que tocou, que abençou - essas falas são ludibrições da experiência real com a vida. Rejeita-se qualquer possibilidade de que Cristo caminha conosco integralmente. Sendo assim, as partes centrais da liturgia (adoração, confissão, louvor, edificação e dedicação) devem enfatizar a experiência e a vivência (vida) com Deus. Por que, por exemplo, a confissão é um balde de água fria sobre o que no segundo seguinte serão declarados perdoados? Que liturgia é essa que exclui a dor do pecado, a angústia de ser declarado réu, de refletir sobre o porquê ser pecador, de conhecer a prisão pela iniquidade, de desumanizar-se na maldade. Pecamos porque anulamos os efeitos litúrgicos de autoconhecimento. E aqui caberia excelente argumento de que o culto é a celebração do nascimento, morte e ressurreição de Jesus Cristo (vida). E parece-me que a palavra missa remete a esse contexto do que culto quando entendida somente como adoração ao Senhor. Afinal, a vida é a oferta de adoração e louvor (culto) a Deus.
Finalmente, nos andos eu me conheço.