domingo, 19 de setembro de 2021

Teologia, suicídio e pastoral

 


Assim como todo tema abstrato é subjetivo, a dor de uma pessoa também é. Não há como mensurá-la senão pelas evidências demonstradas dia a dia. Cada experiência de sofrimento se torna uma evolução da acedia, do desespero e da angústia. Há indivíduo que enxerga a morte como a solução para os problemas. E ela não deve ser considerada uma pessoa medrosa e sem coragem. Na verdade, esta pessoa não aprendeu a sentir a eficácia da esperança para a continuação da vida, nem tampouco entendeu o sentido da promessa da vida eterna – mais subjetivo que isto só ignorando a própria fé no Salvador! (1 Tessalonicenses 1:8-10). Neste sentido, a fé continua sendo o consciente imaginário da redenção e da cura de tudo, enquanto o abraço, o beijo e a mão estendida são representações da humanidade viva (Salmo 133).

Pessoas desejam a morte porque foram acometidas por doenças, por rejeição, por descontroles emocionais e financeiros, por fracassos profissionais, por enfraquecimento e perdas de relacionamentos, por luto e por terapias paliativas a pacientes terminais, por incompreensões das convenções sociais e por estigmas marginalizantes, por cores de pele, etnias e raças, por ideologias políticas, econômicas e religiosas, por lendas e mitos, por nomes e instituições, por mentira e fraudes, por ignorância e poder, por cargos e salários, por engano e traição, por sexo e dinheiro, por deuses e magias, por casados e solteiros, por preços e frivolidades, por discriminação, ira e ódio, por mais armamento e assassinatos, por destruição e desvalorização da vida humana, enfim pela finitude do ser. Pessoas preferem a morte porque o encanto da vida deixou de ser romance, encanto, doçura e prazer. O maior milagre a ser proclamado na sociedade atualmente seria o do chamado dos deprimidos e dos angustiados, a fim de que todos eles(as) “levantem-se, aprumem-se” para a missão da vida. E assim como Jesus disse ao enfermo: “Levanta-te, toma o teu leito, e anda” (João 5:8, versão Bíblia ACF Online), a sociedade anseia que a igreja tenha estas palavras de ânimo e motivação para os que sofrem de dores da alma veem na proposta da vida a busca pela felicidade.

O verbo levantar-se (do grego egeirō) é o mesmo utilizado no contexto da ressurreição. Há vários contextos linguísticos que este verbo pode ser aplicado. A princípio, tem a ideia de estimular alguém a sair de uma situação de inércia e vir para uma outra situação, a de movimento. Podendo representar, por exemplo, o despertamento para uma nova tarefa ou desafio a ser superado. Neste sentido, qualquer ação de levantar-se, despertar-se, significa sair da inatividade e entrar para a atividade, sair da ruína e vir à construção, sair da inexistência para a existência, sair do sono e despertar-se para o trabalho, desistir da doença e degustar da cura, ausentar-se da obscuridade e aproximar-se da transparência, entre outros. Em contextos de aconselhamento, discipulado, orientação pastoral e fortalecimento de vínculos com deprimidos e angustiados, as terapias recomendadas devem ser administradas com base na teologia da ressurreição. Assim sendo, exige-se do(a) pastor(a) o conhecimento das patologias e o discernimento acerca dos que atentam contra a própria vida, a fim de que o ministério seja o de recuperação e o de restauração de vidas. Por isto, e. g., a ministração da oração só será válida à luz da compreensão de que ela [a oração] seja dialógica, isto é, mais mitológica do que ritualística, mais expressiva do que simbólica, mais narrativa do que paliativa, mais farmacológica do que hipocondríaca. A teologia fornece sim ferramentas contra a angústia, a depressão e o suicídio. Mas é preciso dominá-las exemplarmente. Para os que sofrem do atentado à própria vida, a teologia não é uma ciência do “achismo”, nem dos magos e dos sindicalistas da fé. Antes, ela pontua a fé como ação terapêutica para a redenção integral do ser humano.

Os analíticos policiam a eutanásia porque buscam diagnósticos clínicos e racionais, porquanto os continentais vigiam o suicídio como decadência da sociedade moderna. E, nas comunidades cristãs, os clérigos condenam a auto interrupção biológica como pecado sem perdão. A princípio, tal discurso não deveria ser ignorado, mas aplaudido. Todavia, a longo prazo, esta mensagem é acusadora e não produz efeito de acolhimento e redenção. E aqui há uma reflexão bíblica e teológica: ora, então Cristo não morreu pelos que atentaram contra a própria vida! Chamem os exegetas e os hermeneutas: (1) acaso Sansão não postula uma história heroica sobre os filisteus por meio do suicídio? (Juízes 16); (2) acaso não há equívocos nos dois relatos da morte do rei Saul; afinal, ele cometeu suicídio ou foi morto? (1 Samuel 31 e 2 Samuel 1); e (3) Como interpretar o suicídio de Judas Iscariotes? (Mateus 27:5). E, voltando agora para os leigos, sabe-se que eles supervalorizam a espiritualidade do Alto, ou seja, dos que subiram o monte e foram ver os gravetos pegarem fogo e, ao mesmo tempo, eles menosprezam os que praticam as ações da Terra, porque são mais ativos diante da necessidade e do sofrimento humano. Assim sendo, pergunta-se: somos mais partidários ao clero do que ao laicato? Somos mais acadêmicos do que os membros das igrejas? Somos mais teólogos da ressurreição do que os teólogos da crucificação? Afinal, diante da realidade do suicídio, qual é a ação ministerial da igreja cristã?

O setembro é amarelo sim, mas só existe para a conscientização. Esta ação deveria ser uma constante missional, isto é, “para todo o sempre”. A pastoral não é para ser ostensiva aos que já tiraram a vida. Antes, ela tem que ser preventiva e atuante aos detalhes que tornam a pessoa vulnerável ao sofrimento. Há diferenças gritantes em um anúncio contra o pecado e um chamado à graça de Cristo a favor do(a) pecador(a). A parênese sobre as consequências do erro, vitupério, vilipêndio e falha, realizada inconsciente e irresponsavelmente por líderes cristãos, pode afetar o(a) indivíduo [em sua individualidade] e torná-lo(la) frágil, vulnerável e desorientado(a). A pregação contra o pecado tem afetado o(a) pecador(a), a ponto dele(a) sentir-se a causa do pecado. E, uma vez vitimado(a) pela prova do pecado em si, a dor do pecado finaliza-se na morte do(a) pecador(a) – eis aqui o porquê da “igreja cristã” acusar os que se opõem ao discurso do pecado para gerar o discurso da santidade. Tenhamos em mente o fenômeno dos estigmatas (do grego stigmata, as marcas de Cristo) da Idade Medieval, com as quais o(a) pecador(a) “curtia” as cicatrizes no corpo e que testemunhavam acerca de sua fidelidade e experiência com a fé em Cristo. Na verdade, tais “espiritualidades” mascaravam as epilepsias, os transtornos mentais e até mesmo as anorexias, as convulsões nervosas e a auto-mutilação. Assim sendo, o que dizer acerca do crescente número de pastores que cometeram suicídio? Acaso seria impensável uma tanatopraxiologia em ambientes exclusivamente cristãos? A resposta é: “sim, é inviável e impensável”. Assim sendo, a missão é a favor da vida, é a favor dos detalhes que tornam a vida mais feliz, prazerosa e frutífera. Na medida em que a felicidade ganha força e age em prol da vida humana, o desespero, a angústia e a melancolia são enfraquecidos e se tornam inócuos na sociedade. Até aqui, a profecia cristã já foi dita: o suicídio é como fermento; ele leveda, cresce, é invisível e silencioso.

O pecado sempre será um mistério, mas a vida do(a) pecador(a) continuará sendo uma constante descoberta. A igreja cristã não deveria escandalizar-se com o pecado dos membros. Antes, ela deveria oferecer os ministérios de descobertas sobre a vida das pessoas que creram em Cristo (II Coríntios 5:17). É interessante observar quando vamos à seção de bebidas em um supermercado. Ali, há muitos sabores [e fragrâncias]. Nos EUA (2003-2004, lembro-me de experimentar uma cerveja com mel (Honey Porter da Samuel Adams), uma com banana (Banana Bread Beer da Wells) e uma com perfume (Dragon’s Milk da New Holland Brewing). Odiei todas, mas sabia que lá havia diversidade! A fé é em Cristo também promove dinâmicas de descobertas: para uns a fé é a cura do câncer; para outros, ela é a aprovação do(a) filho(a) no vestibular; talvez alguns pensem a fé em Cristo como sendo a fidelidade à participação dos cultos e eventos da igreja; e talvez para outros, a fé no Salvador é como uma competição consigo mesmo: quando mais fiel à igreja, maiores são as [minhas] chances de obter a ‘identidade cristã’. Todavia, a tendência é padronizar as experiências da fé em Cristo: “aqui fala-se em línguas”, “aqui você tem revelação”; “aqui você expulsa o demônio”; “aqui você fala com Deus”; “aqui, você é santo!”. De fato, os discursos existem, mas não são para as descobertas de si e do encontro com Deus. São para indicar os limites de atuação da liderança da igreja. Cada convertido(a) é uma vida que se descobriu em Cristo e não há, na mesma comunidade, uma descoberta idêntica e vivenciada por outro. Mas ao condenar estereótipos e biótipos, as comunidades cristãs podem dificultar a aproximação de pessoas que desejam buscar o sentido da vida. A igreja cristã é um lugar de bênção e promoção da vida, ela foi chamada para ser a congregação dos pecadores justificados, dos pecadores santificados e dos pecadores lavados [purificados] (1 Coríntios 6:1-11).

Uma das excelentes ferramentas contra o angustiado e deprimido é quando ele(a) encontra nas igrejas cristãs o espaço para o acolhimento, a escuta e a confissão. Portanto, não importa a denominação nem tampouco o estilo litúrgico e doutrinário da comunidade. Importa sim que ela tenha ações de atendimentos às pessoas. São nos momentos de acolhimento e de escuta que as pessoas criam laços de confiança, credibilidade e confidencialidade; e lá acabam fortalecendo as diretrizes de reconstrução de suas vidas. Excetuando os casos de gravidade jurídico-criminal, nenhum caso é excludente do atendimento por comunidades cristãs. Cada comunidade cristã deve ter a ciência de que ela é um sinal do reino de Deus, portanto uma agência do serviço de resgate da criação. Neste momento, a liderança perceberá se os ministérios existentes atuam a partir da abordagem do acolhimento e escuta ou se são artifícios de promoção do stato quo religioso. Haverá sim momentos em que a própria comunidade precisará requisitar ajuda mais elaborada, a dos profissionais. Entenda isto: o trabalho pastoral atua na prática de aconselhamento como orientação e fortalecimento de vínculos em perspectiva religiosa, isto é, a de religar a criatura ao Criador; o psicólogo atua na prática de terapias conversacionais, por meio de diagnóstico, prevenção e tratamento de distúrbios mentais, emocionais e de personalidade, com vistas ao auxílio da estabilidade psicológica do paciente; o psiquiatra atua na prática de diagnóstico, prevenção e tratamento das pessoas que sofrem distúrbios de doenças mentais, decorrentes ou não de ansiedade, depressão e dependência química; o assistente social é o profissional que viabiliza os direitos sociais chegarem até os necessitados, por meio de acesso às políticas públicas (saúde, educação, saneamento etc.). Nenhuma ação pastoral é única e definitiva sobre a luta contra o suicídio, ela é um tijolinho na construção do edifício (1 Coríntios 3).

Outra ferramenta é o da comunhão. Ou melhor, dos espaços e momentos da relação de sororidade (entre irmãs) e fraternidade (entre irmãos), a partir dos quais o(a) indivíduo é conectado pelo sentido da eclésia: uma organização de pessoas vivas, unidas umas às outras pela fé em Cristo e pelo batismo do Espírito Santo. Comumente, chamamos de apoio familiar, ou ainda, de membros da família da fé. De fato, a comunhão é o maior empreendimento da igreja cristã no mundo, pois fornece os fios da teia que constantemente é tecida para atar as conexões em rede em prol de vidas. O(a) indivíduo angustiado e deprimido precisa sentir-se querido pela igreja, isto é, que ele(a) pertence à comunidade.

Uma terceira ferramenta estaria focada no(a) próprio(a) indivíduo. Ou seja, torná-lo(a) ciente de que a vida dele(a) é um culto dedicado a Deus. Sim, a vida humana é constante louvor e adoração a Deus – por isto a vida tem centralidade no papel de resgate e redenção de todos os povos (etnias). Neste momento, o(a) pastor(a) é ponto chave para religar a pessoa a Deus, inclusive reforçando o argumento de que o amor divino (graça) está no contexto do culto a ser oferecido (gratidão). Portanto, as liturgias são excelentes oportunidades de tornar os cultos como práticas de inserção, participação, libertação e compromisso.

Há muitas outras ferramentas. Todas são destinadas para o exercício da missão da igreja no mundo. Hoje, estamos cooperando com a conscientização acerca da prevenção contra o suicídio; e concordamos sobre o papel da igreja cristã no mundo, isto é, ela está no caminho e tem contribuído para o resgate de vidas.

Pela vida em Cristo, vivamos todos!