domingo, 18 de março de 2018

O fôlego da vida




Lembro-me de uma propaganda de creme dental, cuja ênfase cinematográfica era a de demonstrar pessoas sorridentes, ou melhor, extravasando suas arcadas dentárias, e pronunciando a famosa interjeição “Ah” com frescor, suavidade, alento e, bem mais acentuado, de existência.
Obviamente não irei falar da marca deste produto. Quero sim trazer à memória o slogan que o produto divulgava, isto é, ‘de bem com a vida’. A preservação da vida continua sendo o maior investimento da humanidade. Nenhum interesse deve ser superior àquele que protege ou mantém a vida, desde a anterior concepção até o vindouro tempo aiônico (eterno). A vida é a marca que precisa ser divulgada, seja nas relações da humanidade, da natureza e dos universos como também das angústias, dos medos, das doenças e da morte. Se há a identificação do fôlego, então o espírito vivente se manifesta, metamorfoseando-se em ar, luz, som, unidades conjuntivas complexidades integralizadas e as plēreumas organizadas. Cada ser humano é em si a divulgação do produto vida.
A vida é o maior produto do desejo do Absconditus, cujo resultado é vir à existência. E, sendo a manifestação do hálito divino, ela não pode ser negociada. Não há dinheiro que compre a vida, mas certamente há preços que patrocinam a morte! A fé, por exemplo, é a divulgação que a Vida tem feito em toda a história da criação. Ela é o ato profuso da salvação eterna sendo conquistado. E, neste sentido, há os que diariamente morrem porque se negam a aceitar o mistério da vida que emerge da fé. Quem vende a fé ou faz uso indevido dela criminaliza a missão dos viventes e rejeita a possibilidade da redenção integral. Por esta razão, Deus jamais é ou será negociado, pois ele é abundante vida aos que creem.
Ao nascer, a criança é expelida para fora e, mediante alguns ritos de inicialização fisiológica muscular involuntária e independente, o líquido dos seus pulmões é expulso, causando-lha fortes dores no aparelho respiratório e ocasionando sofrimento. Ao chorar, interpreta-se que ela ‘nasceu’, ou melhor, chegou ao mundo. Contudo, esta mesma explicação também foi divulgada em ampla literatura bíblica, pois “Então Javé Deus modelou o homem com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas o sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivente” (Bíblia Edição Pastoral, Gênesis 2:7). Nesta narrativa não é dito sobre o choro da humanidade (Adão e Eva), mas menciona sobre o ‘fôlego/sopro de vida’ – isto é, o choro ao nascer é a sonoplastia da propaganda da vida.
Para os semitas, o ato de respirar, então, significou receber o Rua´ Yahweh (Espírito de Deus) e ‘chorar’ é a confirmação de que nascer significa viver a vida. E para os ocidentais, o Pneuma tou Theou (Hálito/Vento/Espírito de Deus) é a capacidade divinamente recebida de compreender e fielmente cumprir a missão do resgate da vida. Portanto, o fôlego da vida é um dom missionário divino dado a cada ser existente. E esta existência para a vida pode ser mensurada pelas expressões do pensar, sentir, falar, criar, aprender, pertencer e amar. A vida impõe-nos a exigência da linguagem, da afetividade e da perpetualidade. O futuro é imortal porque sempre havemos existir. O presente é possível porque somos “o um para o outro”. E, finalmente, o passado é aceitável porque sabemos interpretar como foi a experiência da vida. Mais uma vez, a experiência da criação resulta sim na apropriação de respirar a fé.
Minha argumentação é apresentar a existência humana como uma grande sala de aula, cujo conteúdo é o ensino e o aprendizado sobre como respirar a fé. Não se trata de exercícios aeróbicos ou da avaliação de capacidade pulmonar. Nem tampouco a correção dos ruptos noturnos ou dos odores socialmente desagradáveis. Trata-se da assimilação extática e extraordinária do fôlego que nos dá a consciência de existência como resultado da benevolência e da soberania divina. E, mais ainda, diz respeito à adesão dos mandatos sobrenaturais da própria fé, ou seja, comprometer-se responsavelmente com todas as ações proativas à preservação e manutenção da vida. É mais que um estudo filosófico, teológico e biológico. Refere-se à dinâmica de que este conteúdo está gratuitamente disponível para todos os entes a tornarem-se verdadeiramente os aspirantes da fé. Ao respirar, cada um enche-se do Espírito de Deus e expira as ações que hão de transformar radical e socialmente os promotores da morte! Há sim muitos que aprenderam parte deste currículo, ou seja, sabem perfeitamente apropriar-se dos mandatos divinos, mas são incapazes de exalar serviços terapêuticos da vida. Por isto, a morte também chega para os denominados ‘possuídos de Deus’. A respiração da fé sempre é mão de duas vias. Enche-se de todas as virtudes e conhecimento da vontade de Deus, e esvazia-se através de ministérios redentores da criação.
Em contrapartida, a noção de que iremos deixar de existir é ontológica, cada um de nós é consciente da finitude. Faz parte da vida a sensação da súbita interrupção orgânica. Por isto o sofrimento pela vida é perene – e é errado abreviar esta demanda. Pois, o fôlego é o frescor do sorriso dado pela Vida em cada manhã, é a fricção bilabial dos amantes em constantes trocas de fluídos, é a descarga dos espasmos de si dentro do outro, é o êxtase da viagem sem combustível e condução, é a concretização do já e ainda não. A vida sempre é um presente porque ajuda-nos a superar a proximidade da partida.
A baixa autoestima é o terceiro indicativo de que há doentes da fé, seguido pela indiferença com a ecologia. Mas é a violência com o próximo que julgo ser o terceiro indicador da morte. É claro que o tema do amor divide-se entre esses três. O amor a si mesmo preconiza a auto aceitação, estimula a vivência baseada em cuidados, desenvolvimento psicossocial e maturidade existencial. É a resiliência de viver o sofrimento de si. E o que dizer a respeito do amor ao meio ambiente? Afinal, precisamos de água, oxigênio, plantas, animais, enfim precisamos da Natureza. Não significa ser animistas, mas sim entender a “ânima” (animus) dos elementos da criação. Significa ainda relacionar-se a ponto de compreender a extensão de cada um deles em nós! Cada ato contra a natureza é uma violência à vida. Neste sentido, devemos ser educados para “habitar a casa” (oikos, ecos = casa). Já o amor ao próximo exige o entendimento acerca do encontro da metade que há de tornar-se juntamente o inteiro. Cada um torna-se o todo ao existir para o outro. É o amor fraternal, o da relação de pessoas, o do convívio entre seres, o da harmonia de amar “as carnes”, “é o pastor que conhece as ovelhas pelo nome, pelo cheiro”. É “o ajuntamento de pessoas em constantes movimentos” (L. Wirth).
Para finalizar, julgo o entendimento acerca do fôlego da vida como sendo a dinâmica da espiritualidade humana. Ou seja, a espiritualidade é o resultado de como cada um se coloca disponível para entender sobre a ação do Espírito de Deus em si. É também a resposta a esta entendimento, que corresponde geralmente ao compromisso de ser um agente promotor da ação deste Espírito. Em palavras mais simples, amar a si, a natureza e o próximo significa responder à respiração da fé. A integridade e a fidelidade à respiração da fé divulgam a espiritualidade dos comprometidos com o slogan da vida. Eles são conscientes do “Ah! De bem com a vida”.