sábado, 12 de março de 2011

A verdade é violenta: aporéticas cristãs do evangelicalismo brasileiro


Sabe quando temos repentes mentais e a resposta é um assopro para fora, aliviando a tensão e pressão que há em nossos pulmões? O problema não é soltar o ar, mas a sensação estranha que temos logo após esse alívio: consciência aguçada, pensamentos mirabolantes, desajustamento espacial, ânimos elevados, vontade de exercer a justiça com as próprias mãos, crise de santidade, raiva, medo, rancor e, sobretudo, a busca pela sobrevivência.

Deixe-me ser mais claro, afinal esta reflexão propõe-se a falar a verdade. Um dia, dialogando com o meu grupo de Residency Cohort (os alunos de tempo integral devem gastar doze horas de estudos em grupo por disciplina), um dos integrantes disse que a solução de problemas morais no cristianismo se encontraria na conversão à verdade. Alguns disseram que não, mas, sim, o de ir ao encontro à santidade. E outros, mais acirrados em suas eloquências, propuseram uma construção hipotética de uma escola cuja matriz curricular partisse do contexto da verdade. Entre todos, obviamente, não houve palavra final. Nesse dia, chegando em meu dormitório, respirei fundo e soltei o ar. Sentei-me na minha cama e, espreguiçadamente, deitei. Subitamente, levantei-me com sensação dolorosa no peito, braços adormecidos e leve espamos. Cerca de dez segundos, presenciei (Erlebniz, vivência no alemão) as emoções pós-alívio. Então, disse comigo mesmo: "P.q.p., se somos filhos da Verdade, então há alguma coisa errada em nosso testemunho". [De imediato, os leitores terão que me perdoar pela expressão vulgar que usei e os próximos a mim sabem que sempre infiro sobre vocabulário de baixo calão, entretanto foi tão espontâneo que resolvi ser fiel ao fato. Aos que se sentirem ofendido com este meu lapso, v.t.n.c.]. Imediatamente, recorri aos textos do Evangelho de João, pois em seus escritos avlh,qeia (verdade, em grego) é a chave hermenêutica de seu testemunho acerca de Jesus. Por que Jesus anunciou-se como a verdade para o mundo? (Jo 14:6).

Decidi meditar sobre isso e cheguei à conclusão de que a força da mensagem transformadora de Jesus no contexto da Palestina se encontrava no anúncio da verdade. A verdade eliminaria a hipocrisia, a mentira, a religiosidade, a falsidade, a imundícia, a impudicícia e a opressão. Os convertidos a Jesus Cristo precisaram ser confrontados com o conteúdo da verdade: todos os atos proclamatórios de Jesus em João foram violentos. Já, já, vocês entederão o sentido da violência em falar a verdade.

Vamos regressar um pouco ao conteúdo do Antigo Testamento. Em Gênesis 12:10-20, Abrão, em viagem ao Egito, diz ao Faraó que Sarai é sua irmã e não propriamente esposa. Então, o Faraó a toma para seu harém. Desculpem-me os conservadores na leitura do texto, mas o Faraó, sob os indicativos culturais de que Sarai é irmã de Abrão, certamente dormiu com ela e, no final, o grande Patriarca é, na verdade, corno. Eis porque no final do texto, o próprio Faraó reconhece que fôra enganado e não mereceria o castigo de Deus. Há quem julgue que o escritor (narrador) de Gênesis não tenha se preocupado em deixar esta lacuna sem explicação. O bloco literário dos capítulos 20 e 26 esclarecem o parentesco entre marido e irmã-esposa. Pois bem, julgando que preservar a vida é maior que contar a verdade, então Abrão preferiu mentir que comprometer sua integridade física. O medo o levou à mentira.

As consequências são severas demais. Em 12:17 é Deus quem estabelece a verdade para reparar o adultério de Sarai (um pecado consciente) e do Faraó (inconsciente, sic). Deus julga o pecado do Faraó com doenças para o Egito, e abençoa Abrão com ovelhas, vacas, asnos, escravos e escravas, mulas e camelos (v. 16) e posses (v. 20). O interessante é perceber que a leitura cristã desse texto leva a comunidade a declarar que é a promessa de Abrão ser o patriarca fez com que ele mentisse e fosse preservado. A leitura da cristandade está equivocada e esse tipo de aceitação e ensino nas comunidades favorece a distorsão da verdade. Esconder a verdade é profissão dos mentirosos, é a artimanha de maquilar a destruição vindoura. Esse texto já me conduziu a concluir que, em situação de perigo e medo, o ser humano prefere usar outros artifícios para se defender do que propriamente assumir as consequências da verdade. Vale a pena dar uma olhada no livro de John Powell, Porque tenho medo de dizer-lhe quem sou, sobre os mecanismos de defesa do ser humano.

Pior ainda é quando as pessoas usam a mentira para manter-se nos cargos que lhe aferem poder, posição e soberania. Vamos a mais um exemplo do Antigo Testamento. Em 2Samuel 11 e 12 há o famoso relato do pecado e da penitência de Davi. É o encontro de Davi com Batsebéia e sua contrição. É notório o crescente devastador sobre a atitude de alguém que não sabe controlar o poder que tem: viu, mandou chamar, dormiu com ela (v. 2-4). Após configurar que havia cometido adultério, Davi articulou um projeto em cuja estratégia estaria presente o assassinato de Urias. Obviamente Davi pensou em manter-se no cargo de rei, afinal adultério não era permitido para os monarcas e, muito menos ainda, àquele que fora escolhido por Deus. Então, ele usa a estrutura do próprio governo para tirar proveito. O verso 25 transparece ironicamente a alegria de saber que, finalmente, Urias havia padecido em batalha. Se Urias tivesse sobrevivido, Davi deixaria de ser rei. Mas Urias morreu e o seu reinado estaria salvo. Eu me pergunto, até aqui, acaso Davi tivesse realmente perdido o cargo de ser rei, Deus não levantaria outro? Ou ainda, a verdade seria mantida e, destarte, da mesma forma que o Faraó, mesmo adulterado, foi-lhe preservada a vida por libertar Sarai e Abrão, Davi também não seria libertado? Mas não, segundo a narrativa, a consequência atingiria um outro inocente. O filho dele com Batesebeia morreria. Por quê? Davi, no capítulo 12, é acometido de uma crise de santidade e recorre aos aparatos litúrgicos (jejum, vestes, oração) para sentir-se mais tranquilo sobre a morte do bebê. O texto diz que Deus feriu o menino. Alguém se habilita a interpretar exegeticamente como foi a morte do bebê? Nem queira saber, é violento demais. Os genocídios são verdadeiras aberrações nas tradições primitivas. O recém-nascido precisou morrer para que a estrutura dinástica davídica permanecesse. O menino vivo seria a prova do adultério do rei. Matá-lo é a única maneira de encobrir, mais uma vez, a mentira. Minhas percepções até aqui são a de que a inocência e ingenuidade de alguns servem de apoio para os planos diabólicos de outros.

Mas eis que surge um mensageiro de Deus para denunciar o erro de Davi, o profeta Natã. O capítulo 12 registra-o com uma parábola e oráculo de juízo contra Davi. Esse oráculo também é violento. Davi é acusado veemente pelo profeta. A denúncia o torna culpado, réu de dois assassinatos. Ele é homicida e foi sentenciado à morte. "Tu agiste às escondidas, mas eu o farei diante de todo o Israel, em pleno dia" (12:12). A mentira, a malícia, a arrogância e a soberba precedem a queda. Toda obra diabólica promovida pela mentira é fragmentada pela profecia da verdade. Suntuosos em seus cargos, imperadores, reis, princípes, presidentes, ministros, congressistas, políticos, diretores, chefes, etc serão banalisados quando agirem na escuridão. Os filhos das trevas são os pastores que ad hoc usam da estrutura carismática da communio para legislar em causa própria. Afirmam possuir a visão de Deus, terem o sonho do Espírito revelador e seguem a Palavra da Verdade. São pastores enganadores, que agem indiscretamente. A avareza faz parte de suas personalidades malignas, pois "Se dissermos que mantemos comunhão com ele e andarmos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade" (1Jo 1:6).

Sobre esse momento, eu registro: por que pastor precisa transportar dinheiro dos fiéis para paraísos fiscais?Por que ícones esportivos precisam ofertar para suas igrejas altas quantias? Por que denominações insistem na construção de edifícios faraônicos? Por que a fé precisa ser equiparada aos valores monetários das reuniões de batalha espiritual?  Por que a ação do Espírito Santo senpre está vinculada às obras de levantamento de recursos, de apoio à missão e de crescimento de igrejas? Tais interrogações, ao serem respondidas, sempre distorcem o conteúdo dos filhos da luz. Para os filhos das trevas, a eloquência do poder de Deus, da sabedoria da Palavra e da direção do Espírito sempre serão argumentos violentos para esconder a verdade. Conheço, por exemplo, há mais de quinze anos uma instituição que possui dois centros de formação de liderança, um no Hawai e outro nas Filipinas (para ajudá-los na identificação). O objetivo é treinar obreiros no quesito da liderança cristã. Afirmam que o treinamento proporcionará um style a partir do qual a liderança cristã será global. Cada participante, ao retornar ao seu país, tem que multiplicar o treinamento para outros cem. A idéia é excelente, é ministerial, é tremenda... Vamos aos fatos. Essa instituição possui hotéis que vivem essencialmente do turismo. Com custo reduzido por participante, mas com todos os apartamentos preenchidos, a despesa é indexada e há, fortuitamente, lucros. O ministério perdura por quase meio século e ainda não enxergei pinceladas de transformação em solo brasileiro, e olha que conheço muitos obreiros formados lá. Onde está Natã?

Um outro registro que quero fazer é decorrente da leitura do livro de Aldous Huxley, Os demônios de Loudun, que fiz em 1994 quando cursava meu último ano de Bacharelado em Teologia. Esse romance é construído sobre o ambiente religioso, no qual um padre mantem-se no poder eclesiástico ao utilizar-se do contexto da linguagem e experiência cristãs, manipulando as interpretações e reações da comunidade. A partir de fenômenos estáticos, ele planeja ardilosamente junto com duas freiras a possessão delas e intitula-se o maior exorcista da época. Na história, ele mantém um caso com a cafetina da cidade, da qual tem uma filha e por ai vai... Em alguns momentos, parece que a verdade vair vir à tona, mas sempre uma nova articulação para escondê-la aparecia. Até a mais alta estrutura eclesiástica fez vistas grossas com receio de perder a credibilidade dos fiéis. Se está dificil entender até aqui, sugiro então ver o filme Fé demais não cheira bem, no qual muitos dos milagres são planejados. Mas em nome da mentira, foi Deus quem os realizou!

Já está longo, deixa eu ser mais breve. Vou usar um exemplo do Novo Testamento, mas vou deixar que o leitor faça a reflexão. Refiro-me ao episódio de Atos 5, o de Ananias e Safira. E para fazê-los fundir a cuca, faço as seguinte interrogações exegéticas: Como é que o Espírito Santo mata as pessoas, uma vez que ele é o Espírito da Vida? Quem, afinal, matou Ananias e Safira? Por que a mentira é considerada um pecado para a morte? Por que os mentirosos não são sentenciados à morte? E para direcioná-los à própria conclusão, por que a narrativa exemplifica a mentira em um contexto financeiro? Cheguem às suas conclusões, mas já-lhes afirmo: há rumores de que a carreira pastoral é motivada pelos honorários obtidos.

Voltando ao texto do Evangelho de João, no qual o vocábulo verdade é constante, quero avançar no tema da violência. Jesus anunciou-se como o Cristo. Disse que seria traído. Revelou prematuriamente sua morte e ressurreição. Condenou os fariseus na religiosidade do templo. Advertiu os espiritualistas quanto à prática do jejum. Realizou milagres. Contrapôs-se política e economicamente aos poderes do mundo. Perdou pecados. Abençoou aos pequeninos. Conversou com mulheres. Alimentou judeus e gentios. Bom, leia o Evangelho de João... Mas há alguns versos que nos remete ao sentido da verdade enquanto libertação. Por exemplo: João 8:36, que diz: "Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres". Pois bem, se Cristo é a verdade e verdadeiramente ele nos livra, logo a mentira nos aprisiona. O ex-presidente do Brasil afirmou que o fato de você mentir pela primeira vez, é que sempre você terá que mentir para justificar a primeira. Sendo assim, um certo político foi questionado sobre possíveis condutas imorais que vinha tendo fora do leito conjugal. Foi-lhe perguntado: "é, porventura, verdade os boatos de que você pratica imoralidade sexuais, sendo duas delas o adultério e a homossexualidade, como também vem inserindo os próprios funcionários de seu gabinete nessas orgias"? Prontamente, ele respondeu: "É mentira. Nunca participei de imoralidade sexual. Nunca fiz tamanha bestialidade. Tenho compromisso com a verdade". Horas depois, chegando em casa, comentou com a esposa: "Fomos descobertos". Naquela noite, conversaram sobre como proceder diante da sociedade. Decidiram continuar a manter o mesmo depoimento dado. Alguns anos se passaram e, novamente, surgiram novos boatos. Só que dessa vez, ambos decidiram ignorar os comentários. Haveria um contratempo financeiro para ambos, caso resolvessem assumir a verdade. Esse político possuía influência na sociedade. Também costumava socorrer as pessoas com empréstimos financeiros. Eis que um profeta surgiu na comunidade. Indignado com o fato, foi até o político e lhe pediu para procurar ajuda com os outros advogados, afinal advogado exorta políticos. Eis a única frase que o profeta disse: "Assim diz o Senhor: Farei que a desgraça nasça de tua própria casa" (2Sm  12:11). O profeta não sabia o porquê dessas palavras, mas o político certamente percebeu o juízo sobre suas mentiras. Mas o profeta foi coagido a permanecer quieto e não comentar com ninguém, O profeta tinha uma pendência financeira com o político. Diante da situação, o casal então procurou abafar os boatos: concedeu mais empréstimos aos devedores e mais descontos aos novos, fez doações para organizações missionárias, seminaristas e fundações, apareceu na mídia e publicou em jornal sua jornada ministerial com um título: "um mandato baseado na verdade".

Dez anos se passaram. A estrutura dos filhos das trevas está para ser declarada, no entanto ainda são fortes as artimanhas diabólicas que a detém. Onde está Natã?