sábado, 31 de dezembro de 2016

Cicatriz da saudade do amor





A vida é como um enunciado de estado. Fala-se uma frase e, analiticamente, reconhece-se dimensões dos estados da alma. Ou ainda, em orações com períodos longos, percebe-se as nuances dos sentimentos expressos pela vivência e experiência humanas. Ninguém é isento de enunciados de estado, afinal todos são vítimas das emoções. Cada um de nós é foco dos sentimentos, cuja alma recebe dialeticamente as vicissitudes da própria caminhada e da busca pela existência consciente no mundo. Ignorar a identificação dos estados de alma é sucumbir às doenças sociais pós-modernas, sendo a depressão a maior delas. Sendo assim, a maior emoção sentida é a de viver.

Os enunciados de estados são dois. Um é de posse e o outro é o privação. A posse se caracteriza por aquilo que se adquire, ganha, recebe, conquista, obtém, etc. “Eu comprei um carro” é um tipo de enunciado característico da posse. Não importa o mecanismo de articulação ou lógica de argumentação, pois no final a construção das sentenças é para elucidar e persuadir a todos, visto que o sujeito é a vítima da posse. Já a privação opõe-se fortemente ao estado de posse. “Cheguei ao serviço hoje e anunciaram-me que havia sido demitido”. Havia um empregado e, depois do anúncio, passou-se haver um desempregado. Posse e privação são, portanto, o foco dos enunciados. Deve-se atentar para a construção de como eles se articulam, pois é desse efeito de transição entre os enunciados que são identificadas as emoções.

Até aqui, pode-se entender a dinâmica da vida como a transição entre os estados de alma, caracterizados pelos enunciados de estado de posse e de privação. E, uma vez identificados, analisa-se as emoções. Por exemplo, o que é a felicidade senão uma satisfação, um contentamento? Mas quando vista pela análise destes estados, então a felicidade passa a ser os itens que sustentam e revelam estas emoções. Por isso alguns “sentimentos” serão, muitas vezes, simbolicamente representados por objetos reais da vida humana, sejam eles eufóricos (positivos) ou disfóricos (negativos). Estudar e compreender as emoções são excelentes oportunidades para conhecer os limites de superação do ser humano. Neste sentido, as emoções são indicadores dos níveis de satisfação e de insatisfação.

O que é a saudade? Afinal, é uma palavra cuja descrição semântica só é existente em Língua Portuguesa. Saudade é uma cicatriz causada pela lembrança eterna de alguém que amamos e que, pela jornada da existência, a perdemos. Ela é um período sem fim, através do qual há estímulos acerca de nossa formação (“morphosis, desenvolvimento e comportamento social) e transformação (“metamorphosis”, maturação e identidade). A saudade sempre será um estado de privação, mas que será superada pela enorme quantidade de posses conquistadas. “Não se mata a saudade, vive-se dela”. Deve se pensar na saudade como um dom divino, cujo objetivo é viver na esperança de ver a Deus face a face. A saudade é o destino das utopias, nunca será alcançada, mas sempre existirá como o alvo a ser conquistado.

Quem já perdeu alguém, experimenta a saudade dia a dia. Vive-se liturgicamente o luto da lembrança. As reminiscências são atos celebrativos, cujos ritos reforçam a perda e amenizam a dor. A saudade é sim uma cicatriz porque sinaliza a vida em aperfeiçoamento, tanto pelos sentimentos e pelas emoções, como pela volição e pela razão. Saudade é a habilidade de lidar consigo mesmo, seja melancólico ou eufórico, pois é através dela que descobre-se a experiência da saudade que havia na vida de alguém. E ela sóé verdadeira porque é o resultado do campo da alteridade. É a descoberta da relação do “eu” com “você”. Enfim, a saudade é de você, nunca de mim mesmo!

Quem já amou e não conseguiu mantê-lo, vive da ilusão da saudade. Sim, a saudade ilude à medida que não se entende a lição ensinada. Vive-se na busca de paliativos: sexo, dinheiro, drogas, jogos, bebidas, etc. Diz-se que os melhores placebos são os para a saudade, e eles vêm embrulhados em formato social de ‘pequenas simpatias’ ou mesmo ‘crendices populares’. Mas a melhor saudade é a do amor, porque ela revela a força de amar eternamente e a fraqueza de deixá-lo escapar. A saudade do amor é o motor de quem acredita na esperança, ou mesmo de quem crê no reencontro, ou mesmo de quem deposita toda a vida na expectativa de redenção futura. Não se vive para o futuro, espera-se nele. Não se vive para o passado, aprende-se dele. Vive-se para o presente acreditando. Crer é o aprendizado da saudade do amor, porque faz-nos viver eternamente.

A força da saudade não nos controla, ela inclina-nos à organização da vida. Quem bem alimenta as suas saudades, frutifica-se com lembranças, esperanças, futuridade e alteridade. Trata-se de alguém que mais se preocupa em aproximar-se da força de si do que deixar que as convenções sociais forcem-no a fazer. A saudade é um ímã que atrai as pessoas para o entendimento e as repele da angústia. Não há vida sem a presença da saudade!

Há uma única cicatriz da saudade, mas ela é alimentada por muitas experiências da vida, sendo o amor a maior delas.