quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

BRUEGGEMANN, Walter. The Creative Word. Cannon as a Model for Biblical Education. Philadelphia: Fortress Press, 1982, 167 páginas.

BRUEGGEMANN, Walter. The Creative Word. Cannon as a Model for Biblical Education. Philadelphia: Fortress Press, 1982, 167 páginas.

O objetivo desta resenha é indicar a importância de um modelo bíblico de educação para todos os que enxergam o ministério cristão como um espaço do poder de criar. É também uma colaboração para os educadores envolvidos com o ensino bíblico e religioso, numa perspectiva do criticismo literário e bíblico. Aponta, ainda, consideráveis análises para a educação teológica, a partir de textos normativos (canônicos) e autoritativos (exposições). Eu até diria que há excelentes exegeses feitas das passagens bíblicas. 

Walter Brueggemann é sacerdote protestante da Igreja Unida de Cristo. É autoridade em estudos do Antigo Testamento (AT) e compartilha no meio acadêmico excelentes pesquisas acerca de comentários exegéticos, teologia do AT, introducão ao AT e, grandemente, nos periódicos e artigos exporádicos. Uma de suas maiores contribuições é o livro A imaginação Profética, publicado em português pela Edições Paulinas. Devido à sua formação, sua metodologia de estudo do AT são fortemente literários (domínio exemplar dos gêneros e estilos literários), sociológico (facilidade em identificar as funções nos relacionamentos dos personagens bíblicos) e também dialético (uma maneira singular de proporcionar a crítica às relações de conflito teológico e ético). Tais habilidades lhe concedem o título de ser exegeta e teólogo. A presente obra é fruto do seu entendimento acerca da Palavra como base de educação (ensino e aprendizagem).

Logo no Prefácio, Brueggemann esclarece que o presente livro surgiu dos traços comuns que há entre as disciplinas de Introdução ao AT e a de Educação. Para ele, o AT é fonte inegostável para estabelecer as abordagens de identidade do povo de Deus, as didáticas do conteúdo sobre YHWH e as técnicas de ensino e os resultados dessa aprendizagem. O autor estrutura sua obra a partir de dois eixos. O primeiro é sobre o significado que o cânon tem no estudo do AT. O cânon é a regula fidei dos entendimentos da história, teologia e literatura do AT. Entender o cânon é a tarefa do estudioso do AT e sua resposta imediata ao ministério de ensino. Não há como ignorar a pragmática do AT sem vínculo com o repertório educacional com vistas à transformação social. Identidade, redenção e libertação representam o resultado do cânon vétero-testamentário. E o segundo eixo é a identificação retórica de textos exegeticamente esboçados que imprimem o sentido educacional do povo de Deus. Sendo assim, esses dois eixos promovem o cânon como o estabelecimento curricular do AT. Obviamente que a relevância da leitura dessa obra reside nos avanços que a educação cristã e teológica devem ter no contexto eclesiástico brasileiro. Inicialmente, há um descaso no ensino do AT em nossas comunidades e um entendimento superficial do que significa o estabelecimento identitário da nação de Israel em relação à igreja brasileira. Há, ainda, a distância exegética para a produção de sermões, cursos bíblicos e projetos de integração cultural. Há, sem exageros, a incompetência interpretativa de líderes em reduzir o sentido e significados de passagens do AT ao seguimento de festas dos tabernáculos, ao uso de véus para as mulheres, à circuncisão masculina e ao demasiado apego aos ritos e costumes hebreus. E, no contexto das escolas teológicas, o estudo do cânon é conteúdo ignorado no ementário, devido à dificuldade de ajustá-o adequadamente às disciplinas de Introdução ao AT, Teologia Bíblica, ou ainda à Teologia Sistemática e/ou História dos Dogmas. Para mim, o estudo do cânon, tanto do AT como do NT, é libertador quando de fato aproxima a promessa e a bênção à pessoa que tornou isso possível, Jesus Cristo.

O capítulo primeiro se encarregou de apresentar o Cânon e o Repertório Educacional (p. 1-13) como conscientizador para se ter uma comunidade educacional. Afinal, a "educação tem a ver com a perenidade de uma comunidade através das gerações" (p. 1). É por isso que o AT possui um arcabouço da educação do povo de Deus (do hebraico 'Ish, povo e 'El, Deus). O repertório educacional de Israel é o cânon, cujo texto precisa ser filosoficamente compreendido através das lentes dos conceitos de continuidade e descontinuidade. Brueggemann é enfático ao dizer que estamos em um momento crucial para o ensino do AT com relevância em nossas comunidades, e também em achar um fio condutor acerca dos diversos métodos de estudo do AT (Sociológico, Literário, Teológico, etc). A partir dessas observações, ele, então, propõe uma atenção ao processo e forma do cânon como abordagem educacional. Para ele, canon is a clue to education (o cânon é uma pista para a educação). Para que isso aconteça, precisamos: (a)  entender claramente a crítica sobre o cânon (entenda-se crítica como estudo, desenvolvimento), ou seja, os avanços feitos a partir de Gerhard von Rad e não adotar uma forma simplista de que AT caiu do céu; (b) atentar para que não haja demasiada ênfase sobre a forma final do cânon (cf Child) e não ao processo em si (cf Sanders); (c) interpretar cuidadosamene a relevância da crítica da redação no estudo do cânon (vale a pena ver as análises de Brueggemann feitas sobre as pesquisas de Clements, Blenkinsopp e Sheppard); (d) dimensionar os resultados semânticos que a Torah proporciona ao estudo do AT a partir dos grupos sociais (lei dos sacerdotes, conselho dos sábios e palavra dos profetas exemplifcados em Jeremias 18:18). Na verdade, Brueggemann aponta para a educação nos seguintes propósitos: (a) a Torah dos sacerdotes refere-se ao Pentateuco dando sentido literário ao projeto educacional a partir da tradição mosaica; (b) os profetas e a Torah servem de conteúdo histórico do programa educacional; e (c) a sabedoria dà o aspecto ideológico da educação do povo de Israel. Ainda é enfática a observação que é na nação escolhida, Israel, que esse programa foi aplicado, cujo requisito é a fé em YHWH. O autor, ainda, nos alerta sobre três correntes que determinam o avanço dos estudos do AT (o conservadorismo, a crítica social e a psicologia humanista). Resumidamente, o pensamento de Brueggemann é o seguinte: estudando a formação do cânon do AT, é possível identificar a filosofia estrutural do projeto educacional de Israel, cuja proporção é tríade: ethos (comunidade da Torah), pathos (comunidade dos profetas) e logos (comunidade dos sábios). Então, para entender o projeto de educação do povo de Deus é necessário o domínio das escolas libertárias aqui envolvidas, pois sem tal especialidade não ocorrerá a formação de identidades. A indicação desse capítulo é essencialmente para os versados em abordagem educacional libertária (redentora), além, é claro, aos professores de estudos bíblicos. Um estudo mais profundo deveria ser feito acerca do ethos, pathos e logos do ponto de vista semântico, por exemplo, pathos é mais enfático se traduzido como paixão ao invés de sofrimento.

Os capítulos 2, 3 e 4 foram estruturados a partir de três textos normativos, cujas perguntas serão respondidas dentro da perspectiva educacional na formação do cânon. Essas perguntas se encontram em Josué 4:21 (cap. 2), Jeremias 37:17 (cap. 3) e Jó 28:12 (cap. 4). O capítulo segundo é intitulado The disclosure of binding (A abertura do selo, p. 14-39) e a descrição é sobre seis perguntas do Hexateuco cuja forma literária é o da repetição. É o tipo de construção paralela AB, ou seja, pergunta e resposta, por exemplo: "E disse aos filhos de Israel: Quando, no futuro, vossos filhos perguntarem a seus pais, dizendo: Que significam estas pedras?, fareis saber a vossos filhos, dizendo: Israel passou em seco este Jordão" (Js 4:21s). Essas perguntas, para Brueggemann, são o repertório canônico educacional da história de Israel que fomentou a identidade e a autenticidade do povo escolhido. O capítulo é estruturado em duas excelentes exposições educacionais. A primeira diz sobre as narrativas como modelo primário de Israel sobre o conhecimento. Para o autor, o conhecimento de israel é (1) autoritativamente dialógico, ou seja, o projeto de "Educação em Isarel começa com o desejo dos filhos pertencerem ao segredo. Ensinar talvez seja o manuseio audaz daquele segredo, tendo un senso agudo de quando e em quais caminhos ele é apropriado a conciliar e quando revelar" (p. 16). Ou seja, os ritos serviam como técnicas de propagar o ensino e "os filhos" ficavam ansiosos de querer entender o porquê de alguns rituais com segredos; (2) é com resposta imediata dos pais aos filhos, representando a articulação do credo, os testemunhos da fé; (3) a Torah é como um relacionamento entre aluno (filhos) e professor (sacerdote, pais), onde os filhos perguntam e os professores respondem. Essa abordagem é bem defendida pelo autor ao dizer: "Esse modo de instrução canônica acredita que a articulaçao normativa da fé reside fora da psiquê humana do indivíduo, ela existia antes de nós, esperava por nós e foi-nos dada como presentes". A síntese é que a Torah proporciona um conhecimento firme, gracioso e com autoridade, tanto para quem possui como para quem é possuído por ela. Algo interessante que o autor faz e que também concordo plenamente é dizer como a narrativa exerce epistemologicamente o efeito de produzir sentido pela Torah. A narrativa é (a) concreta, (b) possui início e fim, (3) conduz à prática da imaginação, (4) descreve experiências individuais e comunitárias e (5) é a linha de fundo da história de Israel. A segunda exposição apresenta o consenso subversivo da Torah. Para Brueggemann, o ethos de Israel apoiado na Torah descreve: (1) a intervenção de um novo Deus (ou melhor, uma distinção entre o Deus revelado a Moisés com o Deus revelado a Josué, numa perspectiva da história da conquista de Canaã); (2) a inserção significativa dos ritos como representação dos milagres e maravilhas; (3) a clara diferença entre os poderes de YHWH e as demais divindades; (4) a celebração do poder direcionado totalmente a YHWH; e (5) a importância do livro de Deuteronômio em Israel. Esse capítulo é indicado aos educadores que desejam fazer um processo inverso para descobrir o currículo educacional do Israel primitivo, ou seja, um trabalho de descontrução: partindo da leitura feita, tentar encontrar as chaves curriculares da Torah. Esse capítulo também é indicado aos líderes responsáveis por projetos de educação cristã nas comunidades, cujo objetivo é saber sobre a montagem de um currículo formado (shaped) no conhecimento de Deus.
O título do capítulo terceiro diz sobre O rompimento da justiça (p. 40-66). Na verdade, o termo rompimento é no sentido de "surgimento, aparição". A justiça surge/rompe na história de Israel com o tema da justiça. O texto é estruturado em dois argumentos, e o primeiro é sobre a Nova revelação e Racionalidade Poética cujo propósito é apresentar a palavra profética como modo de conhecimento. Para Brueggemann, o conhecimento dos profetas impõe-nos um entendimento acerca da mitologia (obviamente entendido como fenômeno religioso), da psicologia, da sociologia, da política e da própria religião. A linguagem é em forma poética com a clara finalidade de, através de expressões idiomáticas, (a) quebrar e esmiuçar o universo dominante do discurso, (b) colocar o próprio Israel dentro da experiência de vida, sem que ele seja visto externamente pela visão ética ou política; (c) aceitar que os profetas sabem anunciar a vontade de Deus através dos recursos literários. O segundo argumento intitula-se Os finais e os inícios além do possível e a finalidade é mostrar como a nova verdade é introduzida na comunidade de fé. Agora, a Torah é mais uma vez revisitada para dizer que o objetivo educacional é a maturidade dos invidíviduos ao mais profundo encontro com a verdade. Enfaticamente, esse capítulo é direcionado aos pastores, líderes de comunidades e professores de ensino bíblico para que atentem sobre o significado da Torah para o povo evangélico brasileiro. Será que ainda não conseguimos abordar a conversão à verdade para candidatos políticos porque nunca introjetamos o sentido de Tiorah no ambiente evangélico?

O quarto capítulo exige-nos atençao para o fato de que é necessário descrever O discernimento para a ordem (p. 67-90). O objetivo é responder à pergunta: "Mas onde se achará a sabedoria? E onde está o lugar do entendimento?" (Jó 28:12). Com certeza, a resposta é Deus, todavia Brueggemann expande essa apresentação afirmando que: (a) a sabedoria pode ser entendida como as alternativas intelectuais das tradições; (b) a sabedoria sofreu sofisticações, partindo dos conceitos éticos para os teológicos; e (c) a sabedoria deve sempre estar associada ao agrupamento do conhecimento razoável e responsável com a confiança apaixonante. O diálogo nas narrativas proporciona o entendimento acerca da sabedoria como descrição da vida, do mundo e da experiência. A relação professor-aluno revela a vontade de Deus. O autor esclarece em dois blocos sua proposição sobre as técnicas de ensino de sabedoria. O primeiro se denomina Observação Paciente e Incerteza Expectante e conta com (1) as instruções didáticas em formas imperativas e proibitivas, (2) os ditos numéricos e respectivas listas, (3) os paralelismo e suas variantes, (4) os provérbios com respectivos adágios de instrução e (5) as metáforas e as símiles (comparações), responsáveis pelo ensino abstrato dos valores culturais. O segundo bloco refere-se ao tema das Interconexões com o Sagrado, cujos argumentos são para caracterizar a substância da sabedoria. Para o autor, esse processo é resultado (1) do trabalho dos mestres, (2) da premissa de ensinar o bom conhecimento, (3) da aquisição do conhecimento transcendente, i.e., Deus é quem providencia a sabedoria, (4) da dialética nas doxologias como forma de interligar o divino com o humano e, para o autor, essa ligação é feita com o contexto da vida. Para mim, esse capítulo serve como apoio aos educadores que já alcançaram certa maturidade para saber discernir sobre os imperativos educacionais de um currículo baseado no cânon. É lamentável saber que esse tipo de abordagem curricular não é endossado por nenhuma escola teológica brasileira, afinal ter o cânon do At como fonte de estudo é algo que não agrada as massas. Mas é através que saberemos discernir a ordem...

O capítulo quinto, e último, traz o título de Obediência como um método de conhecimento (p. 91-117) e tem o objetivo de alertar-nos sobre a nossa tarefa educacional. Nesse capítulo, o autor retoma o sentido do cânon, feito no primeiro capítulo, e sabiamente resume os efeitos do método de conhecimento proposto. São eles:

"(1) o ethos de nossas comunidades sabe que o memorial das pedras já foi dado, estabelecido e pode ser confiado. Abraçamos o consenso da Torah. Temos a revelação do propósito de Deus e o caminho para o seu povo. É certo e sem dúvidas que essa revelação já está entre nós.
(2) a pathos de Deus guia-nos para uma nova verdade nos canais sem credenciamento. O consenso é esmiúçado pela palavra de rompimento do profeta. Nesta poesia da pathos, as definições concretas da realidade são superadas, para o fim que não se finaliza, para começar o que não começou ainda.
(3) o logos de Deus é a ordem certa da realidade criada. É uma ordem que requer sabedoria para discernir - uma ordem que leva à responsabilidade e liberdade, mas também ao mistério e ao pavor. A ordem da vida está às vezes disponível para nós e às vezes esconde-se de nós. Sabedoria é a prontidão para penetrar o mistério e viver obedientemente com sua inescrutabilidade" (p. 91).

Brueggemann também apresenta dois argumentos para explicar como a obediência é um método de proporcionar o conhecimento de Deus. O primeiro argumento é desenvolvido através da análise literária (e exegética) de alguns salmos sobre o pronome tu. Para ele, tu representa (1) um tipo de discurso direto, estilizado, corporativo e também pessoal, (2) uma certa influência sobre os imperativos de obediência, promessa e fé e (3) uma relação de comunhão com o divino (aliança). O segundo argumento tematiza a obediência como experiência da aproximação de Deus. Os salmos sempre consideram a proximidade de Deus em todos os momentos de insegurança, sofrimento e desespero, alinhados à promessa de estar com o seu povo. Esse capítulo faz-me refletir sobre os resultados de uma comunidade cujo currículo é baseado na obediência a Deus. E, dessa forma, indico-o aos leitores que queiram buscar uma proximidade com Deus através da prática de obediência. Eis, de fato, um excelente projeto de estudo da espiritualidade cristã contemporânea baseada na obediência como método de conhecimento.

Há ainda que considerar exemplarmente as citações finais feitas por Brueggemann (p. 119-161), um conjunto de renomados autores e excelentes explicações sobre recentes pesquisas acerca da crítica literária do AT e respectiva contribuição ao ensino nas comunidades. É claro que Brueggemann é autoridade sobre o AT e isso fica bem claro pela forma como apresenta seus estudos, nada é sem fundamentação e/ou corroboração. Sua metodologia é ainda algo a ser pesquisado por outros, qual seja, a facilidade em aprofundar questões exegéticas e descrevê-las em linguagem acessível. Sem dúvida, essa obra deverá ser lida por professores da área de estudos bíblicos, de educação cristã e teológica. Oxalá, ele ainda venha fazer a mesma abordagem para o cânon do Novo Testamento.