segunda-feira, 4 de março de 2013

Quero ser curado


Não é errado desejar a cura, nem tampouco buscá-la. Errado é contentar-se com os placebos oferecidos pelo mercado, tanto religioso como convencional. Desejar a cura é uma atitude própria do ser humano, pois trata-se de uma constante busca pela felicidade. O ideal da cura é paradoxalmente o da alegria completa.  

A alma humana é a mais difícil de ser curada. Ela percorre a jornada do impossível, do inalcançável, do inatingível, do desconhecido. Como curar alguém que se sente emocionalmente culpado porque o relacionamento acabou? Era preferível uma traição, uma briga, um desrespeito, enfim algo que pudesse "justificar" a causa. Mas não. Nada fora racionalmente aceitável para que a pessoa se satisfizesse com o término da relação. Não é questão de lógica, mas de sentimento. Sente-se culpado porque há traumas que foram dolorosamente responsáveis pela sensação de finitude. A doença se alastra na mente e se torna  a ferramenta de destruição de qualquer habilidade e competência cognitiva. A percepção é de inexistência, um verme que logo será atingido pela inanição e servirá de alimento às covas da imunidade social. 

Ser doente da alma é estar consciente da busca pela cura. E tal busca é assustadora, sim, pois mostrará maiores debilidades ainda "não-reveladas". É a ironia das doses homeopáticas da autocompreensão. Não se deve atemorizar-se com respeito às novidades, mas recear-se das promessas sem lutas, sem efeitos colaterais ou ainda sem feridas difíceis de se cicatrizarem. A cura da alma é a retomada à restauração, cujo tratamento desperta novas faces da doença. Alude-se, inclusive, às pequenas sequelas de outros problemas não tratados adequadamente. Nesse caso, não se ignora as cicatrizes, mas a abertura delas para um novo tratamento. 

A cura da alma deverá apresentar caminhos de libertação, sejam eles através de ambientes, situações ou relacionamentos. Todavia, todos surgirão com a temática da novidade e da possibilidade. A cura é a administração da liberdade ao cativo, da liberdade ao aprisionado. É, ainda, a oferta de novas potencialiades do descobrir-se para ver, tatear, manusear, sentir, perceber, enfim, amar. A cura é a recuperação do amor, o resgate da essência de poder viver e querer viver. A traição será apenas uma cicatriz da infrutífera relação, mas a cura será a transformação de uma marca para as várias dimensões da nova descoberta. O curado conseguirá ampliar os horizontes da reconquista e da vontade de viver. A cura só é nova para quem aprendeu da velha doença.

Há quem diga que a religião é promotora de doenças. Não vou discutir, pois é bem provável que seja. Acho que tem-se confudido "as manifestações da vida humana com a realidade transcendente" por meio dos discursos institucionalizados das organizações religiosas. Uma oração é terapêutica quando é catártica, ou seja, quando a "doença" é eliminada por meio da adoração, do arrependimento, da confissão, da dedicação e da consagração. O compromisso consigo mesmo e com o próximo é o remédio para a cura da alma. Já as "correntes da fé" ou "novenas" são também terapêuticas quando assumem a construção da espiritualidade em comunidade. Não se deve pensar em "símbolos" ou conjunto de crenças como mecanismos de manutenção da religiosidade da pessoa, mas como recursos de integração da pessoa à comunidade. É o remédio da comunidade para a alma ferida. E os cultos de libertação ou exorcismos deveriam servir como afirmação de fé e não como "desafio a Deus". Deveriam deixar de ser cultomício - obstáculo da graça redentora da alma ferida. Os shows de "prova de fé" só têm validade porque dão movimento à doença, mas não promovem curas da alma. 

Problemas da alma, numa perspectiva terapêutica, também decorrem dos pseudos diagnósticos de remediação. "Ah, o teu caso é um demônio que se alojou na tua mente" - afirma-se em culto evangélico carismático. Mas, a profunda crise é decorrente da emoção. O "demônio" não está preocupado com os sentimentos da pessoa. Outrossim, ele seria limitado pelas clínicas de psicologia e psiquiatria. O demônio articula falsas estruturas diagnósticas para que as pessoas fiquem viciadas e dependentes das inúmeras "sessões" de exorcismos nas despreparadas comunidades. Advogo, sim, a presença de comunidades religiosas com pessoas equipadas e preparadas e que sejam promotoras de cura da alma. São aquelas que adotam uma teo-missiologia integral, favorecendo a inclusão como sistema de descontrução de realidades demoníacas. A compaixão à alma sofrida é a maior ferramenta de cura dessas comunidades. 

Amor à vida, aliado ao altruísmo, servirá de ponte para a solução dos problemas da alma. No encontro dessas duas colunas, será entendido o porquê do perdão e da confissão se tornarem imprescindíveis à cura da alma. A pessoa tem que amar a si mesma bem como deve estender esse amor ao próximo. É o encontro da essência pela essência de ser e querer ser pessoa. O cristianismo foi essencialmente construído nessa perspectiva: "ame a Deus e ao teu próximo como a ti mesmo". A cura é o retorno à prática do relacionamento.

Quero, sim, ser curado da minha desumanidade. Quero deixar de ser aleijado. Quero transcender à esse estágio de tristeza, de acedia e de depressão... Isso já aconteceu: fui encontrado pelo Espírito de novidade e de possibilidade. Percebi, na ressurreição, a eficácia dos componentes destruidores da doença emotiva: outra pessoa também doente. Ao ser curada, essa pessoa voltará para mim. E se não voltar, viverei na expectativa dela acontecer. É assim que se processa a cura da alma.